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UM PRESENTE PARA A MANTIQUEIRA

Na cordilheira de 500 quilômetros que atravessa os Estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro registra-se o oitavo índice mais rico em biodiversidade do mundo. A região também tem a maior reserva de água mineral do planeta, ao lado de um dos climas mais puros. “Podemos dizer que a Amazônia é um container cheio de pérolas enquanto a Serra da Mantiqueira é uma caixinha repleta de diamantes”, afirma José Roberto Manna de Deus, coordenador técnico do Projeto Águas da Mantiqueira, que traz um levantamento detalhado da riqueza de parte desse território feito de florestas, rios encachoeirados e muita vida. O diagnóstico com informações sobre a biodiversidade e os recursos hídricos da área pertencente ao município de Santo Antonio do Pinhal, além de propostas para o seu desenvolvimento sustentável, foi entregue na última segunda feira (21/08) ao prefeito da cidade, Clodomiro Correia de Toledo Jr.  O estudo recebeu o financiamento da Fundação Toyota do Brasil, com parceria da FUNDEPAG, entidade ligada à educação, pesquisa e conscientização ambiental.

 

Por Liane Alves

Durante 15 meses, 30 especialistas nas áreas de Biodiversividade (que inclui campos como o da zoologia, botânica, estudos dos insetos e microorganismos, por exemplo), Resíduos Sólidos e Esgotos, História Ambiental e Ocupação, ou Recursos Hidrícos, entre muitas outras, reuniram informações preciosas sobre a zona urbana e rural de Santo Antônio do Pinhal, que fica encrustada nas encostas da Serra da Mantiqueira a apenas 16 quilômetros de Campos do Jordão (SP). Estiveram também envolvidos a prefeitura da cidade, integrantes da Câmara Municipal e entidades civis, como a Associação de Produtores Rurais (Aprusap), Associação Comercial e Turística (Acasap) e a Associação dos Amigos Pró Santo Antonio do Pinhal, ou Pró-Pinhal.  Heinz N. Thielemann foi eleito, por voto unamine, Presidente do Conselho local do Projeto Águas da Mantiqueira. Os munícipes também se voluntariaram em alguns trabalhos e se reuniram por oito vezes em sessões especiais de discussão sobre o projeto.

Nas suas 160 páginas, o Águas da Mantiqueira, Desenvolvendo Vida  identifica zonas de fragilidade ambiental,
mapeia os recursos hídricos de dez microbacias hidrográficas  e mostra como foi o histórico da ocupação humana do município pesquisado, desde os índios Puri, os primeiros habitantes, até hoje. Também desenha situações futuras e sugere algumas soluções que apontam para uma agricultura e ocupação mais sustentáveis, além de sugestões para as áreas de Educação e Saúde.

Com esses dados em mãos, a cidade pode alicerçar políticas públicas e formatar com bases científicas o seu Plano Diretor, a ser elaborado ainda. O estudo também dará mais força para captar recursos junto a instituições nacionais e internacionais ligadas ao meio ambiente e sustentabilidade. “É todo um processo que acontece a partir de agora, que inclui novas discussões com a população e seus representantes na Câmara dos Vereadores. O estudo certamente pode embasar muitas decisões, mas ele é orgânico e passível de adaptações. Nada será imposto”, afirma Júnior, o prefeito. Transformado num projeto de lei, ele passará por consultas públicas até o envio para a Câmara dos Vereadores e sua aprovação final. Esse processo poderá levar até 12 meses, ou mesmo um pouco mais. Porém a partir da aprovação do Plano Diretor, Santo Antônio do Pinhal pode passar a ser um modelo para outras cidades da Serra da Mantiqueira. A vantagem do diagnóstico feito pelo Águas da Mantiqueira é que ele poderá servir de referência geral à outros municípios da serra, obviamente com algumas adaptações locais.

Descobertas inesperadas

No trecho escolhido como amostra, encontram-se dez importantes microbacias hidrográficas. Seus rios e riachos, dispostos em linha reta, alcançariam nada menos do que 590 quilômetros de extensão. “É a distância daqui a Curitiba. Se fosse colocada lado a lado, a população local, de apenas sete mil habitantes, não chegaria nem ao trevo da entrada da cidade”.  Isto é, é muita água numa rede altamente capilarizada de rios e cachoeiras e uma ocupação de baixa densidade que permite ainda uma proteção razoável aos mananciais. Mas com uma advertência grave: a Serra da Mantiqueira é como uma caixa d´água gigante coberta por uma tampa de cobertura vegetal. Sem a preservação da vegetação, a água simplesmente desaparece, pois é de lenta reposição.

Outro achado de impacto: “Aqui temos nada menos do que 28 espécies de abelhas nativas. Existem lugares no globo em que elas foram dizimadas, ou que só permanecem apenas uma ou duas espécies. Esses locais dariam tudo para ter uma riqueza natural de igual porte”, diz Beto Manna, o coordenador.  As abelhas são polinizadoras, e sem elas não há qualquer possibilidade de manutenção da vida vegetal em grande escala.

Surpreendente também é a presença de cinco espécies de felinos de grande e médio porte: pelas matas ainda perambulam a onça parda (conhecida também por suçuarana), o jaguardi, a jaguatirica e o gato selvagem. Câmeras-armadilhas foram espalhadas pelos fragmentos de florestas da região e vídeos flagraram exemplares de várias espécies da rica fauna local. Microorganismos e insetos também foram classificados, assim como 24 espécies de aves e mais de 10 de peixes (que pode chegar até 20, segundo o cálculo dos pesquisadores).

Embora riquíssima em biodiversividade, a Serra da Mantiqueira é uma área extremamente sensível. Várias medidas que envolvem políticas públicas são necessárias para que o homem possa conviver pacificamente com a natureza, e dela extrair seu sustento sem prejudicá-la. “Damos várias sugestões que podem beneficiar os agricultores, por exemplo, como as culturas que se adaptam melhor à região sem prejudicar o solo ou as outras espécies de seres vivos”, explica Beto Manna. Os fármacos encontrados também foram catalogados, para sua melhor proteção.

“As florestas são como grandes bibliotecas desconhecidas”, diz José Roberto Manna. Segundo ele, temos de saber que livros que estão lá, cuidar deles, conhecer sua utilidade para nós e preservar todo esse conjunto de vida que está intimamente ligado. A Educação que ensina as crianças a ter um contato próximo com essas bibliotecas e a Saúde que leva em conta suas ervas, raízes e sementes medicinais beneficia a população, e o próprio planeta.

A origem do projeto

Embora com tantos recursos hídricos à disposição, Santo Antônio do Pinhal não ficou imune à grave crise abastecimento de água em São Paulo em 2014: nessa época, caminhões-pipa tiveram de entrar na zona urbana da cidade para fornecer água para as pousadas locais. “Foi diante dessa cena, inédita para nós, que resolvemos fazer um projeto que levantasse nossos recursos naturais e revelasse o motivo daquela situação”, conta Fernando Veríssimo, presidente da Associação de Amigos Pró-Pinhal, que se empenhou ao lado do prefeito da cidade e outros moradores locais nesse projeto. Fernando havia sido tocado por uma palestra que ouviu no Seminário de Biodiversidade, Sustentabilidade e Cultura realizado na cidade cinco anos antes pela FUNDEPAG (Fundação de Desenvolvimento de Pesquisa do Agronegócio) e achou que o palestrante, o coordenador-técnico José Roberto Manna, seria a pessoa ideal para chefiar o diagnóstico da região. Inspirados pelo projeto socioambiental realizado em Extrema (MG), que paga aos produtores rurais pelos serviços ao meio ambiente prestados ao município com fundos públicos destinados à sustentabilidade, desenhou-se enfim o projeto Águas da Mantiqueira.

Depois de muita procura por patrocínio, a proposta foi enviada à Fundação Toyota do Brasil. E caiu nas mãos de Thais Guedes, coordenadora de projetos da entidade. “Me apaixonei pela proposta. E aguardamos sua aprovação, que demorou cerca de dois anos”. Foi o tempo necessário para aprofundar e aperfeiçoar as diretrizes do estudo. Além disso, o projeto também tinha outra grande vantagem para a empresa que o patrocinou: “Ele vai na direção de todos outros projetos financiados pela Fundação Toyota do Brasil, sempre ligados à sustentabilidade e à conservação do meio ambiente”, diz Percival Maiante, presidente da entidade. E, durante a apresentação do Águas da Mantiqueira na última segunda-feira, ele lembrou que a natureza sempre foi vital na cultura japonesa. “O Japão é um arquipélago com mais de 100 milhões de habitantes onde cada metro de verde merece respeito”, diz.
A parceria da FUNDEPAG também foi fundamental para a realização da pesquisa e seu relatório final.

Conhecido por ser um administrador eficiente da cidade (está em sua segunda gestão), o prefeito Júnior espera resolver todas as dúvidas com relação ao conteúdo do projeto em discussões com a população e em futuras audiências públicas. Junto com a Câmara dos Vereadores e a população local, ele imagina conseguir elaborar o novo Plano Diretor da cidade em 12 meses, “ou talvez um pouco mais”, afirma. “Mas é com muita alegria que espero deixar esse legado para Santo Antônio, não só para nós, mas também para nossos filhos e netos”.

Sementes sustentáveis como essa podem se disseminar, com o tempo,  por toda a Serra da Mantiqueira.

aromatizantes naturais

AROMAS NATURAIS

A partir de futas, flores e sementes você pode fazer 11 cheirinhos deliciosos para perfumar a casa sem gastar com isso.

Texto: Mariana Bruno

 

LEIA MAIS EM:

11 aromatizadores naturais para deixar a casa cheirosa

 

 

Foto: © (с) Arina P Habich/Shutterstock  

casa no sul

LÃ NA DECORAÇÃO

Esta casa está no Sul do Brasil, mas seus elementos podem enfeitar qualquer recanto gostoso da Mantiqueira. E o uso da lã para decorar aos ambientes pode resultar em boas ideias

É só se inspirar….

Veja como em Experiências e no link abaixo:

Propriedade recupera processo artesanal de produção e tecelagem de lã

Texto: Liane Alves

Foto: Marco Antonio

CAFÉ COM ORQUÍDEA

Há uma pequena entrada na Estrada da Cerejeiras, à direita de quem vai para o Bairro Renópolis, em Santo Antônio do Pinhal (SP). Cerca de 500 metros antes dela, banners já anunciam atrações deliciosas, como chocolate com bolo e doces, sanduíche de shitake, lanche de pernil, sobremesas variadas e outras delícias. Embora os pequenos cartazes sejam objetivos e verdadeiros, eu escolheria outras palavras para chamar a atenção do visitante para esse lugar que serve café em meio a dezenas de orquídeas: beleza e delicadeza, simplicidade e harmonia, simpatia e acolhimento.

É difícil imaginar que depois de uma curva de uma estradinha rural você possa encontrar tantas surpresas. Logo ao entrar no galpão de tijolos com varanda de assoalho de madeira, os olhos se deslumbram. São orquídeas e mais orquídeas vindas das estufas da família Tadaki, de todas as cores e qualidades que você possa imaginar. E um caminho sinuoso de cimento ladeado por pedrinhas nos convida a explorar aquele inesperado jardim. Tudo ali respira simplicidade e beleza e harmonia, principalmente pelo teto de bambu entrecruzado feitos manualmente pelo Senhos Tadaki, 77 anos, o chefe desse clã de agricultores descendentes de japoneses.

No final do caminho, que não é longo, mas acolhedor, você encontra o espaço da cafeteria, com lanches preparados pelo chef Renato. No balcão e nas mesas, Thiago atende com simpatia. Como outros moradores que vem se instalar na Serra da Mantiqueira, eles trocaram suas profissões originais para poder trabalhar por aqui: os dois são engenheiros especializados, um em informática e o outro em telefonia. Vieram a convite de Eduardo Tadaki, o dono do Café com Orquídea, que os conhecia desde a adolescência. Na opinião dos clientes, pelo menos, Renato e Thiago fizeram um ótimo negócio. Para eles, viver na Serra da Mantiqueira é um privilégio.

Numa grande mesa de madeira, ficam expostas as várias opções para o café da tarde, que custa 14,90 por pessoa. Mas é no balcão refrigerado que, junto com o sanduíche de shitake no pão francês, está minha opção preferida: o banoffe, torta de inspiração inglesa feita com massa de biscoito, caramelo e chantilly. Quem faz é Alessandra Yamada, sobrinha da quarta geração do clã Tadaki, que é engenheira agrônoma.  Ah, e as mudas de morango orgânico sem agrotóxicos que estão à venda ali, são cultivadas por outro sobrinho. que é estudante da Esalq, a prestigiada escola de agronomia de Botucatu (SP). E também há em vista um futuro projeto de se instalar na entrada da cafeteria uma banquinha de verduras e legumes sem agrotóxicos cultivados pela família.

As estufas que ficam atrás do galpão da cafeteria também podem ser visitadas (por fora), assim como é possível percorrer os canteiros de amor-perfeito e lavandas da propriedade ou abrir a cesta de piquenique para comer ao ar livre numa mesa de madeira sombreada por árvores. O grosso da produção de orquídeas é vendido para os mercados atacadistas de São Paulo, mas Eduardo Tadaki faz questão de vendê-las a um preço justo para o consumidor (Miltonias por 18,00, Odontocidium por 19,80, Mini-Phaleonopsi por 19,90). Claro, orquídeas raras, como a Wanda, podem alcançar até 159,00, e nem os vasos das exóticas petúnias negras são muito baratos (49,00). Mas, no geral, os preços são acessíveis, além das várias ofertas que sempre estão em curso. No último Black Friday, por exemplo, você podia comprar uma linda orquídea com dois ramos cheios de botões e flores por 30,00 e levar outra de presente.  Isto é, pelo preço de um exemplar da mesma qualidade numa floricultura de uma grande cidade (90,00), você levava seis vasos da mesma espécie.

Nunca minha casa ficou tão florida…

 

 

Endereço: Estrada do bairro Barreiro (ou das Cerejeiras), km 4,5 no Circuito das Flores de Santo Antônio do Pinhal.

Telefone: (12) 98183-5041

Fotos: Antonio Milton Ito Soares

 

 

 

 

casa suspensa

PARA IMPLANTAR JÁ!

Você sonha com uma casa na Mantiqueira?

Aqui um projeto bem original e com bom custo/benefício para você se inspirar publicado na revista Casa Cláudia.

Texto: Letícia de Almeida Alves

LEIA MAIS EM: Casa de campo suspensa é prática e teve custo barateado

 

Foto: Divulgação/Eduardo Pozella

 

POR MAIS CONSCIÊNCIA

Como branca, eu tenho inúmeros privilégios que não me dou conta. E no ano em que se comemora 50 anos da morte do líder negro americano Martin Luther King, acredito que seja um bom momento para fazer essa reflexão.

E quem me enumera as vantagens que eu tenho sem me aperceber são mulheres e homens negros que estão numa roda de debates sobre o Privilégio Branco realizada em março de 2018 no palco do Auditório Cláudio Santoro, em Campos do Jordão.

Foi a primeira discussão da série Diálogos Impertinentes, promovida por Gustavo Prudente, Ricardo Artur Arroyo e sua empresa Sustenta Mundo – Culturas e Relações Sustentáveis, que tem o objetivo de trazer mais consciência ao ser humano, sobretudo aos que estão dispostos a rever ou afinar seus próprios valores, como eu e você. Nessa série de reflexões, a equipe de facilitadores aborda temas relacionados aos privilégios sociais.

Nessa primeira roda, eles convidaram três ativistas negros para, junto com público, falar sobre o que significa ser branco no Brasil hoje, e como isso impacta quem não é branco. Ao falar de sua própria vida, ou melhor, dos detalhes dolorosos e íntimos de sua própria vida, essas pessoas, que sofrem os mais sutis e cortantes preconceitos (justamente aqueles que não ditos diretamente, mas que podem ser percebidos pelo coração), me deixam com vergonha da minha inconsciência. Ou da minha omissão e silêncio, em muitos casos. Por exemplo, não me dou conta de que:

  • sou privilegiada quando entro num restaurante, ou numa loja, e o segurança não me olha desconfiado só por causa da cor da minha pele;

  • sou privilegiada quando outras crianças da minha idade não me chamam de feia por causa do meu nariz ou do meu cabelo;

  • sou privilegiada quando assisto, sem me causar qualquer incômodo, uma novela ou filme onde os brancos são os protagonistas e heróis, e os negros só ocupam um lugar secundário;

  • sou privilegiada quando todas minhas referências de beleza seguem padrões estéticos determinados pelos brancos e para brancos;

  • sou privilegiada quando sou contratada ou ganho uma promoção por ser branca, enquanto um negro é preterido e perde a vaga por ser negro;

E assim desfilam à minha frente uma série de outras circunstâncias que mostram a mim mesma o quanto de privilégios eu tenho sem ter uma consciência clara disso. Como diz Gustavo Prudente, tomo consciência de que “ser antirracista vai muito além de não fazer comentários racistas, compartilhar posts empáticos aos negros ou ir em manifestações”. É preciso ir além, e nem sempre estamos dispostos a ultrapassar essa fronteira. “Buscar ser antirracista implica no desenvolvimento da coragem de se arriscar a perder privilégios em nome de deixar de ser cúmplice com a perpetuação da estrutura racista. É atravessar o próprio medo em nome da luta pela dignidade de todos”, explica ele.

Sim, porque corro o risco de perder uma vaga se questiono uma contratação que pode ter sido feita por causa da minha cor. Ou me arrisco a ser condenada pela família se impeço meus filhos de assistirem um desenho animado com cenas sutilmente racistas. “Outro dia vi um filme da Barbie em que ela sai do mar com os cabelos loiros e soltos enquanto sua amiga negra sai com os cabelos duros. O comentário dela ao ver a amiga é alguma coisa do gênero: “Hum, que engraçado isso…”. Eu não vou deixar minha filha ver um desenho assim, com uma cena dessas. Porque ali já está embutida a noção de que o branco é bonito e o negro é feio, estranho, porque o engraçado aí está no mesmo sentido de ser estranho, diferente, inferior”, diz uma participante do público, casada com um negro. “Temos de estar vigilantes e atentos com tudo o que as crianças consomem em termos de cultura racista”, afirma. E isso requer uma postura ativa e consciente que nos obriga a nos expor, a sair da zona de conforto, a dizer “não, eu me recuso a compactuar com isso”. Sem medo de críticas ao mostrar abertamente minha indignação e inconformidade com isso.

Quando se tem consciência do próprio privilégio, não dá mais para se omitir e fingir que não se vê a discriminação que é feita com o outro.

Coloridos como as borboletas

Uma das participantes do grupo de debates reconhece que nunca teve consciência do racismo antes de vivenciá-lo a partir do seu casamento com um negro. “Minha família rejeitou a união. O mais incrível disso é que eu sou branca, mas minha irmã é morena: temos ancestrais negros na família”, ela conta. Dolores Medeiros, uma psicóloga especialista em Constelações Familiares que trabalha no Espaço Quintessência, em Santo Antônio do Pinhal (SP), concorda e acrescenta: “É muito comum ver negros casarem com mulheres brancas. E isso pode ser bem dolorido para as mulheres negras”, ela diz. Não é o caso dela, que é casada com o ativista negro Dojival Vieira. Mas ela sabe que essa pode ser uma situação comum. E vejo que um dos efeitos mais perversos do privilégio branco é que ele pode alcançar os próprios negros, ao se transformar em algo desejável também para eles. Meu coração fica cada vez mais apertado.

Relacionamentos entre negros e brancos, nas suas diferentes gradações de cor, é algo muito comum no Brasil. Mas nem sempre em termos de igualdade. Poucos admitem essa realidade evidente quando olham o próprio passado de suas famílias. Convenhamos: ninguém que tenha uma família radicada há muito tempo no Brasil está isento de ter antepassados negros. Mas quem tem coragem de assumir? Nos orgulhamos de sermos quatrocentões, mas esquecemos o restante da história. A família Camargo de Almeida, que é minha família original por parte paterna, por exemplo, tem centenas de anos em terras brasileiras, talvez mais de 400. Somos descendentes do Barão de Mambucaba, cidadezinha perto da região de Paraty. Quem garante o nosso passado? Temos milhões de “Escravas Isauras” no país – gente que parece branca, mas que tem uma porcentagem de características genéticas latentes relacionadas ao negro ou índio. Quem disse que o avô do meu tataravô, por exemplo, não se encantou por uma dessas mulheres? Ou que teve um relacionamento com uma escrava e assumiu os filhos? Nós, brasileiros, somos negros e brancos do café com leite mais branco possível ao preto mais retinto. Vamos deixar de ser bestas, então, é difícil encontrar alguma pseudo-pureza racial por aqui (se ela existisse realmente). E esse fato, que, na verdade, deveria ser motivo de orgulho e nos unir, infelizmente nos separa. E por motivos bem questionáveis.

Não existem raças, e esse fato é mais do que comprovado cientificamente. Temos em nosso DNA não só genes da nossa própria espécie, como de espécies extintas (como os Neanderthais), além da presença de genes de várias origens. Enfim, somos todos juntos e misturados. É o que me garante Dojival Vieira, jornalista e dono da agência de notícias Afropress. E ele se refere a algo que é um bálsamo para o meu coração: somos uma mistura danada de cruzamentos de muitas linhagens genéticas. Não existe nada além do que seres humanos, com uma cabeça, dois braços, duas pernas e sangue vermelho. Nenhuma raça é superior à outra, porque elas simplesmente não existem: somos apenas descendentes de hominídeos originários da África ou Austrália, que foram mudando suas características ao correr do tempo, e de acordo com diversas circunstâncias.

“O importante é enxergar a beleza na diversidade dos seres. Ao afirmar que existe uma raça, e que ela é superior a outra, me torno racialista. O movimento negro americano do Black Power, por exemplo, é racialista”, ele diz. O racialismo nos induz a viver sem interação, cada um no seu quadrado, e se achando o máximo dentro dele. Gosto do tom tranquilo, e ao mesmo tempo firme, de Dojival. Acredito que ele já tenha passado muita raiva e mágoa por causa do preconceito, e que as tenha ultrapassado. Ele e Gustavo Prudente, o facilitador do debate, um branco e um negro, são amigos e moram em Santo Antônio do Pinhal, aqui do ladinho de Campos do Jordão. São exemplos inspiradores de que é perfeitamente possível abrir mão do privilégio, de um lado, e do ressentimento, do outro. Na paz.

Martin Luther King, no seu célebre discurso I have a dream (Eu tenho um sonho), dizia que imaginava tempos futuros nos quais “minhas quatro pequenas crianças viverão em uma nação onde não serão julgadas pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo do seu caráter”. E ele continuava a falar sobre seu desejo: “E onde meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos negros e meninas negras como irmãs e irmãos”. Gustavo e Dojival já são assim. E os filhos deles provavelmente serão assim também. Meu coração começa a se aliviar.

Termino a palestra com um sorrisão daqueles por causa da afirmação pró-diversividade e pró-igualdade racial feita por Dojival Vieira. A luta contra a discriminação continua. Mas já se pode dar outros passos além disso, como enxergar a beleza da multiplicidade entre os seres e o reconhecimento da igualdade de seus direitos como algo absolutamente normal e inquestionável.

Quando criança, queria ter cabelos longos e verdes, como as sereias. Não me importaria se minha pele fosse azul, nem que minhas pupilas fossem douradas, como os seres de Avatar. Seria lindo se eu pudesse ser assim, multicolorida. E que todos pudessem ser assim também. Já imaginou quantas opções genéticas teriam nossos descendentes? Cintilantes, a ostentar as 100 mil opções de tonalidades que nos oferecem o espectro visível das cores, não teríamos mais porque brigar. Seríamos tão misturados que ficaria impossível afirmar qualquer tipo de racialidade ou diferença entre nós. E ficaria de um ridículo total alguém dizer algo como “eu sou mais laranja-avermelhado-dourado-com-tonalidades-violáceas do que você, viu?”.

E, nesse exemplo acima, podemos ver claramente que o problema nunca foi a cor. Mas, sim, o nosso nível de consciência.

 

. O segundo tema a ser abordado pelos Diálogos Impertinentes no Auditório Cláudio Santoro será o Privilégio Hétero, em abril próximo.

 

Foto: Antonio Milton Ito Soares

casa em Joanóplois

REQUINTE NA ROÇA

Escrevi sobre essa casa de muito charme e leveza em 2013. E as referências continuam atuais. Uma das que mais gostei foi a mistura original das cores na fachada: terracota com portas e janelas em azul petróleo.

Texto: Liane Alves

LEIA MAIS EM:

Casa de campo encantadora na serra da Mantiqueira

Foto: Evelyn Müller

 

CHEIA DE LUZ

Essa casa na Mantiqueira recebeu o Prêmio Casa Cláudia em 2017. Veja como uma casa na montanha pode ser leve e iluminada.

Texto: Gabriela de Sanctis

LEIA MAIS EM: Visita guiada: casa na Serra da Mantiqueira

 

Foto: Casa Claudia

O PRIVILÉGIO BRANCO

Escrevo ainda esses dias sobre O Privilégio Branco, tema de uma roda de debates que houve no último domingo no Auditório Cláudio Santoro aqui em Campos do Jordão. Foi uma reflexão profunda sobre um assunto inesgotável: a falta de consciência do branco sobre a realidade dos negros no Brasil e o quanto sua condição privilegiada é passada desapercebida, ou conscientemente ignorada, por eles próprios.

 
Estamos falando aqui de doloridos detalhes e nuances expostos corajosamente por mulheres e homens negros, sutilezas embutidas em nossa cultura que ferem sem que os brancos tenham uma consciência clara. O foco não é apenas o racismo aberto, que é mais de fácil de identificar, mas o racismo insidioso e camuflado. Muito importante se refletir sobre isso, pois inclui a todos nós, até os que não se dizem racistas.
 
Também é muito importante para a cidade que o Museu Felicia Leirner abra espaço para essas discussões. Sonho o dia em que o Museu, além de toda sua programação cultural, também se transforme num espaço de reflexão e conhecimento, como é o da a Fundação Palas Athena em São Paulo.
 
O projeto dos Diálogos Impertinentes é iniciativa de Gustavo Prudente e Ricardo Artur Arroio, pensadores e articuladores de palestras, debates e eventos sobre o momento atual. Hoje eles também moram na Serra da Mantiqueira. A gerência do Museu Felícia Leirner está a cargo, já há cinco anos, da historiadora Marina Falsetti Silveira, que abre espaços para a inclusão de temas de interesse da sociedade, numa gestão dinâmica e representativa. 
 
O tema dos Diálogos Impertinentes do mês de abril será O Privilégio Hétero.
 

GASTRONOMIA CRIATIVA

Muitos chefs da Serra usam a fórmula criatividade + tradição nos seus pratos elaborados por eles. E o resultado é surpreendente. “O que eu acho interessante na Mantiqueira de hoje é a presença paradoxal de uma cozinha com um olhar urbano, seguro e criativo ao lado da cozinha caipira, autêntica, sem frescura, orgulhosa de suas origens, mas ainda tímida na promoção de si mesma. Nesse novo contexto, que reflete uma tendência mundial na gastronomia, ela tenta criar coragem para se afirmar” afirma Clarissa Alves Secondi, pesquisadora formada em História da Alimentação na Universidade François Rabelais, em Tours, na França. “A cozinha da Mantiqueira se refere à uma cultura alimentar específica que ainda não tem uma etiqueta definida, como a cozinha baiana, por exemplo. E isso pode ser muito bom: dessa forma, ela busca mais, cria mais, sempre à procura de uma identidade, que hoje pode chegar mais pelo estandarte da utilização criativa dos produtos vindos da região do que por receitas consagradas”, ela diz.

Dessa maneira, a cozinha caipira, que pode ser servida de modo tradicional em alguns restaurantes, também serve de base de inspiração para voos criativos e novas receitas na gastronomia local. Cito só alguns exemplos desses chefs ousados, porque a lista é grande. Por exemplo, Mônica Rangel, que há vinte anos comanda o Gosto com Gosto em Visconde de Mauá (RJ), e que parte de uma cozinha de tradição mineira para desenvolver receitas inspiradas, como o brasileirinho, sobremesa feita com limão e doce de leite. Ou a chef Anouk, que oferece trutas e outras receitas com frutas e legumes de cada estação, do pinhão às alcachofras, do shitake às frutas vermelhas. É uma cozinha com um delicado toque francês (os pais de Anouk vieram da França) que pode ser apreciada num restaurante de charme à beira de um riacho, o Donna Pinha, em Santo Antônio do Pinhal (SP).

Criatividade e tradição também valem para o restaurante Dona Chica, instalado dentro do Horto Florestal de Campos do Jordão (SP). “Ninguém acreditava num restaurante que oferecesse comida brasileira no meio de um parque estadual. Mas completamos cinco anos, e os clientes voltam sempre”, diz o chef Anderson Cesar Oliveira, proprietário do restaurante e também professor da Faculdade de Gastronomia do Senac. Jordanense da gema, ele é responsável pela volta de frutos típicos da região em diversas receitas, como o tomate de árvore, que ele conheceu na infância. “Fui de porta em porta até conseguir uma muda. As pessoas não mais plantavam por aqui”, conta. Também oferece seu leitão pururuca ou a truta salmonada em travessas na mesa, em vez de serem montados no prato. “Quero que o cliente se sinta à vontade, em casa”. Brigadeiros de erva-cidreira podem fechar a refeição.

Lá na Roça, em São Bento do Sapucaí (MG), marcado pela hospitalidade e acolhimento dos donos, comida saborosa e belíssima paisagem, também pode fazer parte dessa lista. Já em Gonçalves conheça o Sauá, de refinado paisagismo e arquitetura, com cardápio assinado pelo chef e professor do Senac Vitor Pompeu.

Fique sempre de olho também para não perder o Festival e Cultura da Roça de Gonçalves, que em 2018 alcança sua oitava edição. Durante o festival, chefs e cozinheiros locais de restaurantes, bares, cafés e botecos da cidade oferecem pratos elaborados com os produtos da Mantiqueira, que são servidos aos som de grupos de viola e  música sertaneja de raiz. Além disso, você pode participar de várias oficinas e workshops relacionados com gastronomia local e comprar na feira de artesanato. O Festival acontece sempre em dois finais de semana, no final de outubro e começo de novembro.

O buffet de domingo do restaurante Alquimia, no hotel Serra da Estrela, em Campos do Jordão, é outro que chama a atenção pela criatividade de seus pratos vegetarianos feitos com verduras e legumes orgânicos. Num ambiente harmonioso com janelões que dão para o verde da cidade e música ao vivo (geralmente chorinhos), você pode escolher entre cerca de 40 pratos vegetarianos, incluindo as sobremesas, e pagar apenas 42,00 por pessoa (durante a semana, o menu confiança custa 14,90). O Alquimia também promove o Festival Vegano de Inverno JMA, com um bazar com vários produtos veganos e outras atividades. Em sua primeira edição, o festival aconteceu no final da temporada de julho (dias 30 e 31) e foi um sucesso. A repetição está garantida para 2018.

Mas se você quiser uma experiência gastronômica inesquecível na Serra da Mantiqueira, e se o seu bolso permitir, visite o Mina, restaurante do belo Hotel & Spa Botanique, em São Antônio do Pinhal (SP). Lá brilha como nunca o chef Gabriel Broide, que resolveu deixar para trás prêmios e elogios constantes de críticos e foodies de São Paulo para viver uma vida pacata e simples na Mantiqueira. Prove, por exemplo, as vieiras em calda de pinhão, na melhor versão mar & montanha da gastronomia, e costumeiramente servidas no outono. Ou o cordeiro. E depois me conte.

E quem não tiver tempo para visitar fazendas ou restaurantes, pode comprar os produtos locais em um entreposto bem sortido, como o do Café no Bosque (leia mais sobre ele na nossa página Delícias da Montanha), que fica dentro do Bosque do Silêncio, um parque bem cuidado localizado em Campos do Jordão (SP).

E tem muito mais. Mas quero terminar com um convite: além experimentar gostosuras e se deliciar com a paisagem, quando for para a Serra da Mantiqueira faça o possível para interagir com as pessoas de lá. Foi assim que encontrei o senhor Tadaki, um mestre  de 77 anos com mãos calejadas pelo seu trabalho como agricultor. O conheci junto à sua hospitaleira família num lugar simples, mas de beleza incomparável, o Café com Orquídea (veja em nosso BLOG a matéria Café com Orquídea). O espaço do jardins, varanda e cafeteria foi construído por ele mesmo, com varas de bambus entrecruzadas, e está localizado em Santo Antônio do Pinhal (SP). Sim, no começo, todos são tímidos. Mas, em minutos, ele já me ensina como fazer uma sandália de palha e assim salvar-me de andar descalça numa floresta, cena que o impressionou muito quando viu Perdidos e Pelados na televisão. E, ao lado de um café e uma fatia de banoffee, torta feita com banana, caramelo e chantilly, ele me conta entre risadas e lágrimas sua história de vida. Que é um pouco a sua história, mas também muito da história da gente de fibra da própria Mantiqueira. Viver experiências como essa não tem preço.

 

Foto: Antonio Milton Ito Soares

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